"A vitória brilhará àquele que tímido ouse". Agostinho da Silva

Terça-feira, 10 de Fevereiro de 2009
O papel da ONU na construção da Comunidade Internacional

A Organização das Nações Unidas é sujeito de Direito Internacional. Trata-te de uma organização internacional, isto é, uma associação voluntária de sujeitos de Direito Internacional, criada por Convénios Internacionais que prossegue objectivos comuns, regulada pelo Direito Internacional, dotada de órgãos permanentes próprios para a realização das suas funções políticas.

Em termos de objecto, é uma organização de fins gerais, visa a cooperação de forma genérica, não tendo apenas a finalidade da paz e da segurança internacionais. Quanto à dimensão territorial, trata-se de uma organização universal, uma vez que pretende abranger todos os Estados, com o objectivo de cooperação.
Ainda quanto à sua estrutura jurídica, é uma organização internacional clássica ou intergovernamental. Distingue-se assim de organizações como as Comunidades Europeias, que são supranacionais ou de integração. A ONU tem órgãos deliberativos constituídos por representantes dos Estados, sujeitos às instruções dos respectivos governos. Impera, como regra de deliberação, a unanimidade, ainda que esta tenda a ser substituída pela regra da maioria qualificada. Controlo jurisdicional, efectuado por um Tribunal de jurisdição facultativa.
A Organização das Nações Unidas é composta por uma Assembleia Geral, um Conselho de Segurança, um Conselho Económico e Social, um Conselho de Tutela, um Secretariado e um Tribunal Internacional de Justiça. A Assembleia Geral, o Conselho de Segurança e o Tribunal Internacional de Justiça são órgãos soberanos, pronunciam-se em última instância e são totalmente independentes. O Conselho Económico e Social funciona da dependência da Assembleia Geral e o Conselho de Tutela na dependência da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. O Conselho de Tutela suspendeu a sua actividade, após a independência do Palav, o último território sob tutela. Prevê-se que este órgão desapareça numa próxima emenda à Carta ou lhe sejam atribuídas novas missões como a salvaguarda do património comum da humanidade.
De facto, apesar de todas as suas limitações, a ONU tem protagonizado a evolução da comunidade internacional.
Em primeiro lugar, contribuiu para a universalização da comunidade internacional, evoluindo-se de um “clube” de países vitoriosos para uma organização que visa englobar virtualmente todos os países do mundo. O papel da ONU destacou-se no regime internacional de tutela; na definição do conceito de território não autónomo; numa clara orientação anticolonialista.
Ao nível do direito internacional e da sua codificação foram dados passos importantes. A fonte tradicional no período pós-guerra era o costume internacional que não respondia às novas exigências de criação de consensos traduzidos em instrumentos normativos, em áreas como a regulação do comércio internacional ou do património comum da humanidade. Apesar de nem a ONU nem as instituições especializadas deterem “poderes legislativos” no plano internacional, há alguns elementos que foram importantes para o desenvolvimento progressivo do direito internacional: forneceram quadros institucionais estáveis de forma a regular matérias objecto de estudo sistemático (elaboração do quadro geral do direito dos tratados, principalmente através da Convenção de Viena de 1969, que equacionou o conceito de ius cogens).  
Foi mesmo criada uma Comissão de Direito Internacional (CDI) destinada a proceder ao estudo permanente e à elaboração de regras de direito, através da codificação do direito consuetudinário, permitindo ultrapassar a falta de certeza que o caracteriza. Esta Comissão era composta por peritos independentes que estiveram na origem de algumas das construções mais estruturantes no moderno direito internacional: Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas. Também as resoluções da Assembleia Geral, embora sem força comparável aos tratados, são hoje reconhecidas como modos de revelação do costume internacional, pelo menos no que se refere ao seu elemento de aceitação, já que o costume só se consolida verdadeiramente decorrido o tempo necessário para que se verifique a sua efectiva observância pelos sujeitos de direito internacional. Para além disso, destacam-se ainda os actos jurídicos unilaterais da organização (como questões sanitárias internacionais ditadas pela OMS).
A Organização das nações Unidas representou, após a tentativa da Sociedade das Nações, a consecução do objectivo de institucionalizar a vida internacional. Há quem autores que defendem até uma unificação ideológica. Mas fará sentido numa organização marcada pela clivagem ideológica entre o chamado mundo livre e o bloco comunista? A Carta contém em si própria, efectivamente, as bases de uma ideologia de vida internacional, ao nível dos direitos humanos, os direitos dos povos (designadamente o princípio da descolonização), a coexistência pacífica, o direito ao desenvolvimento e a ideia de património comum da humanidade.
De mais difícil celebração e adopção foram os Pactos Internacionais de Direitos Humanos que, ao contrário da Declaração, pretendem criar vinculações concretas a que os Estados se obrigam a respeitar na ordem interna. Após um longo período de negociação, em 1966 foram aprovados por unanimidade em 1966 o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Existe um vínculo muito estreito entre a institucionalização da comunidade internacional e a protecção internacional dos direitos do homem: só a existência de instituição e órgãos internacionais, com autoridade acatada pelos Estados, abre caminho a uma efectiva garantia dos direitos do homem em face desses mesmos Estados. As Nações Unidas têm tido um papel decisivo nesta protecção nos textos produzidos ao longo da sua existência e da intervenção das organizações especializadas da “família”: OIT, OMS, FAO, UNICEF, UNESCO.
A coexistência pacífica concretiza-se na preservação da paz, do não recurso à força. Como a expressão “coexistência pacífica” tinha uma conotação marxista os Estados ocidentais fizeram pressão para que fosse abandonada: consagra-se a igualdade soberana dos Estados, do não recurso à força pelo respeito da integridade territorial e independência política dos Estados, resolução pacífica dos conflitos, não ingerência, igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos e o princípio do cumprimento de boa fé pelos Estados das obrigações que assumiram.
Embora os mecanismos de controlo da violação do direito internacional sejam caracteristicamente débeis, dependendo essencialmente da queixa dos Estados que se consideram lesados por essa violação, nalgumas situações existem verdadeiros mecanismos de controlo ao nível da organização mundial. O caso de maior eficácia é a OIT, no âmbito do qual foi instituído um sistema de monitorização do cumprimento pelos Estados das convenções que ratificaram, através de relatórios anuais que se obrigam a entregar. Este relatório é depois discutido por uma comissão da Conferência Internacional do Trabalho. Trata-se de um sistema cuja eficácia assenta essencialmente na situação embaraçosa em que os Estados criticados são colocados e que é designada como “mobilização da vergonha”. Na prática constitui um mecanismo de dissuasão com eficácia razoável. Este método já foi tentado noutras organizações e na própria ONU, mas com resultados bem mais modestos. Um dos exemplos foi criação da Comissão dos Direitos do Homem.
Quanto ao direito ao desenvolvimento colocam-se duas questões. Os países potencialmente receptores do apoio reclamaram-no como um direito, não dependente de condicionantes políticas, os chamados doadores preferiam vê-lo como uma concessão que, naturalmente, permitiria mais facilmente colher dividendos políticos se fosse prestada por mecanismos bilaterais e não dissolvida em mecanismos multilaterais. O elevado número de Estados membros receptores da ajuda ao desenvolvimento têm aprovado numerosos documentos que consagram uma “ideologia do desenvolvimento”. Numa resolução pretendeu-se estabelecer que 1% do PIB dos países desenvolvidos seria destinado aos países em desenvolvimento. Mas, os países desenvolvimentos recusam-se a aceitar este tipo de imposto, encarando-o como um dever abstracto de solidariedade motivado essencialmente pela sua generosidade.
Mas, a ideologia de desenvolvimento está presente na Carta, nas Agências especializadas, assente no princípio da dignidade humana, no direito a uma vida condigna, aos benefícios do progresso social. Deverão ser os principais países em desenvolvimento a traçar a sua estratégia de desenvolvimento, cabendo à comunidade internacional a participação no progresso social e no desenvolvimento devendo completar os esforços desenvolvidos no plano nacional, através de uma acção internacional concertada.
As Nações Unidas têm sido um instrumento de desenvolvimento em três vectores essenciais: ajuda financeira, ajuda alimentar e ajuda técnica.
A ajuda financeira tem sido dada através do FMI (criado na sequência da conferência de Bretton Woods) e do Banco Mundial. O Banco Mundial foi criado para apoiar a reconstrução dos países devastados pela 2ª Guerra Mundial, mas a partir de 1998 passou a estar direccionado para o empréstimo de fundos aos países em desenvolvimento. Este apoio destina-se apenas a governos ou a investidores que beneficiem de uma garantia governamental. Daí que tenha sido criada uma filial, a Sociedade Financeira Internacional, que possa levar a cabo financiamentos de entidades privadas. Também foi criada outra filial, a Agência Internacional para o Desenvolvimento, destinada a conceder empréstimos em condições mais favoráveis do que o Banco. Os seus recursos provêm das subscrições e contribuições dos seus membros.
O FMI destinava-se a assegurar a convertibilidade das moedas, fornecendo apoios especiais destinados a estabilizar as economias dos Estados em situações de crise. A falta de vocação de qualquer uma destas instituições para apoiar financeiramente projectos não amortizáveis ou empréstimos a muito longo prazo com taxas de juro muito baixas levou à criação de uma nova instituição a SUNFED que acabou por não resultar devido à falta de fundos e à recusa dos países desenvolvidos em integrarem os seus órgãos.
Outra vertente da ajuda nas Nações Unidas é a ajuda alimentar. Para além da intervenção da FAO, a ONU tomou diversas iniciativas próprias que levaram à criação do PAM – Programa Alimentar Mundial em 1961.
Já no que toca à ajuda técnica, as Nações Unidas criaram uma verdadeira constelação de instituições especializadas, cabendo à ONU a coordenação do sistema ainda que de forma descentralizada. A coordenação está entregue à PNUD - 1964 (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Mas, é a própria ONU a estabelecer objectivos para o desenvolvimento, nomeadamente, com o lançamento da Primeira Década para o Desenvolvimento em 1960 (que fixava como taxa mínima de crescimento para o decénio em 5%) e a Segunda Década para o Desenvolvimento. Mas, em 1965 concluiu-se que os países em desenvolvimento tinham crescido apenas 1% e a expansão do volume de ajuda havia decrescido. A 2ª Década também não foi concretizada e a 3ª Década não atingiu os objectivos nucleares.
Em 2000, foram estabelecidos novos objectivos na Declaração do Milénio da ONU. Foi adoptada na maior reunião de Chefes de Estado de sempre, comprometeu países – ricos e pobres – a fazer tudo o que puderem para a erradicação da pobreza, promover a dignidade e igualdade humanas e alcançar a paz, a democracia e a sustentabilidade ambiental. Estes compromissos foram assumidos até ao ano de 2015. Alguns desses compromissos: reduzir para metade os índices da pobreza; universalização do ensino primário; promover a igualdade entre os géneros; reduzir a mortalidade infantil; combater a SIDA; garantir a sustentabilidade do meio ambiente; fomentar uma associação mundial para o desenvolvimento; cooperação com os países em desenvolvimento. É o PNUD ainda o ponto focal do sistema das Nações Unidas para o acompanhamento e definição das estratégias para a prossecução dos objectivos domilénio. Apesar de algumas conquistas, verificaram-se já alguns retrocessos com alguns países que viram baixar o seu índice de desenvolvimento humano.
Por fim, as Nações Unidas surgem como um instrumento de pacificação. Apesar de longe dos objectivos dos seus fundadores, tem desempenhado um papel extremamente importante na eliminação das causas de conflitos na regulação pacífica dos diferendos.
O Conselho de Segurança rapidamente ficou marcado pelas vicissitudes de uma bipolaridade e na impossibilidade de intervir efectivamente em crises em que estivessem em causa interesses das grandes potências. Mas, foi a sua acção que impediu a eclosão de um conflito global, uma vez que foi sempre um canal vivo de diálogo em muitas situações de crise. Tomemos o exemplo da Guerra na Coreia.
Nos conflitos em que as grandes potências não tiveram um envolvimento directo, a eficácia da sua intervenção foi ainda maior. As operações de manutenção de paz, apesar de não estarem previstas na Carta, consolidaram a paz, levaram à celebração de acordos, de plataformas de entendimento. Isso implica o regresso e a reintegração de refugiados e pessoas deslocadas internamente, a reconciliação e reconstrução de sistemas judiciais, o reforço e protecção dos direitos humanos, assistência eleitoral e assistência à reconstrução das infra-estruturas políticas, económicas e sociais destruídas pela guerra. Os obstáculos destas acções são o tempo necessário para a sua execução. Os “acordos de prontidão” não surtiram efeito, com a recusa de Estados Membros em ter soldados prontos, após decisão do Conselho de Segurança, de se deslocarem rapidamente para o terreno. Alguns países tomaram a iniciativa de criar uma brigada pronta a actuar num prazo tão reduzido como 48 horas (SHIRBRIG), estando a Jordânia e o Uruguai a um nível de prontidão rápido.
Coloca-se a questão de saber se a ONU se deverá continuar a revelar um mecanismo de legitimação da potência unipolar, com a consequente reestruturação dos seus órgãos, que aliás vem sendo feita: perda de importância do secretariado e, principalmente, do Secretário-Geral. A Agenda para a Paz tornou-se num mero elenco de intenções que os Estados devem apoiar com vista à manutenção da paz. A importância da Organização para os Estados é variável. Para os EUA, apesar da fraca popularidade junto da opinião pública norte-americana, é o único instrumento de legitimação da força no plano internacional. Aliás, é inconcebível que o uso da força fora das fronteiras dos Estados possa beneficiar da legitimação da ONU sem a intervenção dos EUA. Para os outros membros permanentes do Conselho de Segurança a possibilidade de vetarem a legitimidade do uso da força atribui-lhes grande importância no plano diplomático. Para Estados como a Alemanha e o Japão que não são membros permanentes do Conselho de Segurança, sendo duas potências económicas nomeadamente no financiamento dos encargos militares (exemplo: Guerra do Golfo), confere-lhes um peso especial no concerto dos Estados Membros. Aliás, para o Orçamento ordinário de 2002, EUA contribuíram com 22%, logo seguidos pelo Japão com 19,66% e pela Alemanha com 9,85%. Para potências médias como Portugal, que têm os meios indispensáveis para a defesa dos seus interesses no plano bilateral, a importância da participação nasNAÇÕES Unidas no plano estritamente político será reduzida, apenas acrescida quando sejam parte em algum litígio internacional. Para os países débeis, sem capacidade de disporem dos meios diplomáticos que lhes permitam fazer ouvir a sua voz em questões internacionais, a ONU será um “fórum” diplomático indispensável.
A Organização das Nações Unidas é um fórum privilegiado de multilateralismo. No que toca ao plano da cooperação e construção do direito internacional, nenhum Estado pode prescindir de participar no Sistema das Nações Unidas.


publicado por Margarida Balseiro Lopes às 17:53
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