"A vitória brilhará àquele que tímido ouse". Agostinho da Silva

Sexta-feira, 26 de Junho de 2009
A mora do credor

 

1) Noção e pressupostos
A lei estabelece no art. 813.º que o credor incorre em mora sempre que, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação. São dois os pressupostos da mora: a recusa ou não realização da colaboração necessária para o cumprimento e, em segundo lugar, a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.
Há situações em que é desnecessária a colaboração do credor para que haja o cumprimento da obrigação, como é o caso das prestações de facto negativo. Mas, na maioria das situações, é necessária a sua colaboração. Nas prestações de coisa, o credor tem de sempre aceitar a prestação, podendo até ter de se deslocar para um lugar, que não o seu domicílio. Nas obrigações de entrega a mora do credor apenas ocorre quando o credor recusa a prestação que lhe é oferecida. Já nas obrigações de colocação, o simples facto de o credor não se deslocar ao lugar do cumprimento importa a sua constituição em mora. Em certos casos de prestações de facto positivo, o credor pode ter que fornecer ao devedor os meios necessários para que o devedor preste o serviço (exemplo: contratos de empreitada ou mandato). Nas situações em que é o credor a determinar a prestação, se o devedor o solicitar é obrigado a prestar a quitação no momento da recepção da prestação (787/2). Em todas estas situações a não colaboração do credor importa a sua constituição em mora (813º).
Quanto à ausência de motivo justificativo, não recaem em situações de mora do credor casos em que há apenas prestação parcial (763º/1) ou prestação defeituosa ou quando o devedor se oponha ao cumprimento por terceiro não interessado directamente no cumprimento, o credor pode recusar sem entrar em mora (768).
 
2)    Natureza da mora do credor
No que diz respeito à natureza da mora do credor, há 4 teorias:
2.1 Liberdade de colaboração do credor no cumprimento. Posição defendida pela doutrina mais antiga e influenciada pelos pressupostos do liberalismo.
2.2 O credor teria ónus, em sentido técnico, de aceitar o cumprimento, para evitar determinados embaraços; esta posição é defendida por vários autores, como Menezes Leitão e Antunes Varela. Não concordam com a existência de um dever por a lei não requerer a culpa do credor – 813º. Mas, para Menezes Cordeiro a mora do credor implica uma actuação axiologicamente negativa, devendo ser extraída do conceito de culpa, até porque deriva de um acto ilícito do credor.
2.3 Dever de colaboração do credor com o devedor no cumprimento. Esta posição é defendida por Menezes Cordeiro: 1) pelo dever de boa fé (762/2), que dita a necessidade jurídica, a todos os intervenientes, com inclusão do credor, duma correcta colaboração intersubjectiva, incompatível com o agravamento da posição do devedor; 2) todas as sanções implícitasnos efeitos da mora do credor traduzem inequivocamente um desvalor jurídico que recai sobre o comportamento do credor em mora.
2.4 O credor deveria respeitar o direito subjectivo do devedor ao cumprimento. Esta teoria foi defendida por autores mais recentes como Ravazzoni, seguida por Cunha de Sá. Para Menezes Cordeiro, a mora do credor, sendo ilícita, não traduz a lesão de um direito subjectivo do devedor, mas a violação de disposições legais que tutelam os seus interesses.
3) Efeitos
A mora do credor tem 3 efeitos:
a)     Obrigação de indemnização por parte do credor
Uma indemnização das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda ou conservação do respectivo objecto (816º). Como não há o dever de o credor aceitar a prestação (posição maioritária da doutrina, há um ónus, mas há casos em que há dever de colaboração quando a realização da prestação seja estipulada no interesse do devedor; MCordeiro entende que há dever de colaboração, não o fazendo actua ilicitamente), esta obrigação não tem por fonte um facto ilícito por este praticado, seja este de natureza contratual ou extracontratual. Trata-se antes de responsabilidade por acto lícito ou pelo sacrifício (ML e GT), uma vez que ao entrar em mora, o credor sacrifica os interesses do devedor, sujeitando-o maiores despesas do que aquelas que se vinculou a suportar ao assumir a obrigação (isto porque a lei não permite ao devedor considerar-se automaticamente exonerado logo que o credor entra em mora). Daí que se justifique que o credor indemnize o devedor por essas despesas.
b)     Atenuação da responsabilidade do devedor
Nos termos do 798º, o devedor responde, verificando-se a falta culposa do cumprimento da obrigação, pelos danos causados ao credor, presumindo-se a sua culpa no incumprimento (799º). A partir do momento em que o credor entra em mora, a responsabilidade do devedor atenua-se, determinando a lei que este passa, em relação ao objecto da prestação, apenas a responder pelo seu dolo (só é responsável se intencionalmente destruir ou deteriorar o objecto da prestação) e, em relação aos proventos da coisa, apenas responde pelos que efectivamente tenha percebido (814/1), excluindo-se assim quaisquer frutos percipiendos, sejam aqueles que o próprio devedor poderia receber, sejam aqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido (1271º). Para além disso, durante a mora do credor a dívida deixa de vencer juros, quer legais, quer convencionados (814/2). É estabelecido um padrão de diligência quase nulo do devedor, em caso de mora do credor. GT defende no entanto que deve ser feita uma leitura restritiva desta disposição, uma vez que deveria ser equiparada ao dolo a negligência grave, a culpa grave, até porque o devedor tem a possibilidade de consignação em depósito (841º) e o credor é obrigado à indemnização das maiores despesas por ele suportadas (816º). Não se aplicará, segundo ML a presunção do art. 799º, cabendo antes ao credor demonstrar que o devedor actuou intencionalmente na destruição ou deterioração do objecto da prestação.
c)      Inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa
Trata-se de inversão do risco pela impossibilidade superveniente da prestação, quando esse risco resulte de facto não imputável a dolo do devedor (815º). A regra geral é a de que o risco corre pelo credor (790º), mas em certos casos a lei atribui esse risco ao devedor (796/2), continuando assim este vinculado à obrigação, apesar de se verificar a impossibilidade superveniente da prestação por causa que não lhe seja imputável. Ocorrendo mora do credor, o risco da prestação inverte-se, passando sempre a correr por conta do credor, mesmo que a lei anteriormente a atribuísse ao devedor. Por força da atenuação da responsabilidade do devedor, passa a ser considerado como risco da prestação, a correr por conta do credor, as situações em que a impossibilidade superveniente da prestação resulta da negligência do devedor (815/1). Por esse motivo, sendo um contrato bilateral, a perda do crédito pelo credor em mora, em virtude de impossibilidade superveniente da prestação, não o exonera da contraprestação embora caso o devedor tenha algum benefício com a extinção da sua obrigação, possa o valor desse benefício ser descontado na contraprestação (815/2).
 
4) Extinção da Mora
A mora do credor pode extinguir-se por o credor, ainda que tardiamente, vir a prestar a colaboração necessária para o seu cumprimento. Nesse caso, o devedor tem que realizar imediatamente a prestação sob pena de haver inversão da mora, que deixará ex nunc de ser mora do credor para passar a representar mora do devedor.
A consignação em depósito também é um meio de extinção da mora do credor: em caso de prestação de coisa, a lei prevê que o devedor possa exonerar-se através da consignação em depósito da coisa vendida (841º). A obrigação considera-se extinta a partir da consignação em depósito se este não for impugnado ou o tribunal considerar improcedente a impugnação. Se for prestação de facto e não for possível a consignação em depósito, fica o devedor eternamente vinculado: não, por força da aplicação por analogia do 808º com o 411º, deve-se admitir que o devedor possa requerer ao tribunal que fixe um prazo para o credor colaborar no cumprimento, sob pena da obrigação se considerar extinta. Nos casos em que está determinada impreterivelmente uma certa localização temporal – bilhete de cinema para sessão à qual não comparece – parece que a mora do credor deve acarretar a extinção automática da obrigação, mantendo o devedor o direito à contraprestação (815/2), ainda que possa nela ver eventualmente descontado um benefício obtido com a exoneração.
 
5) Os casos problemáticos entre a mora do credor e a impossibilidade não imputável
Importa ressalvar o facto de na mora do credor, contrariamente ao que sucede na mora do devedor (804º), os efeitos da mora são independentes de culpa (ML, RF, mas em sentido contrário MCordeiro) uma vez que, se não se exige ao credor um dever de colaborar no cumprimento, também não se exige que a sua omissão de colaborar seja censurável. Daí que, caso seja impossível ao credor prestar colaboração necessária para o cumprimento, não deverá ser aplicado o regime da impossibilidade da prestação (790º), mas antes o da mora do credor - 813º). Esta é uma solução controversa, na medida em que tradicionalmente se remetia as situações de impossibilidade do credor para o art. 795º, com a consequente exoneração do credor em relação à realização da contraprestação. Mas, posteriormente, passou-se a entender que só haveria impossibilidade se com a colaboração do credor, fosse impossível para o devedor realizar a contraprestação. Se a razão da não realização da prestação reside na falta de colaboração do credor, seja qual for o motivo por que esta não ocorreu, há mora do credor, tendo este que realizar a contraprestação (exemplo – guia de montanha, se houver mau tempo é impossibilidade, mas se o cliente adoecer é mora do credor). (Fernando Cunha de Sá defende que caso fortuito ou de força maior é “motivo justificado”). Antunes Varela não reconduz estas situações à impossibilidade nem à mora, mas antes à situação de perda do direito pelo não exercício dele, ou por virtude de risco a cargo do credor, aos quais manda aplicar o regime da mora por analogia.
Baptista Machado entende que o credor que não recebe a prestação ou não dá a colaboração necessária para a realização dela por força de contingência inesperada que disso o impede não se coloca na situação de mora circunscrita no art. 813º, porque tem motivo justificado. Quando a omissão do credor tiver um motivo justificado parece que a boa fé contratual exigirá que o devedor continue a usar, pelo menos provisoriamente e desde que isso não importe para ele um sacrifício excessivo, do mesmo cuidado e diligência com o objecto da prestação, sem prejuízo do direito a um eventual direito de indemnização nos termos do 816º (exemplo: A que fica doente e não pode posar para quadro – 1227º- ou o B que se recusa a posar - 815, há diferença). O art. 813º pressupõe a possibilidade de mora do credor com motivo justificado. Ora como só uma conduta voluntária livre pode ter ou não motivo justificado, parece que estarão desde logo afastados do círculo de hipóteses do art. 813º os casos em que o credor não coopera por estar impedido de o fazer impossibilidade).  
 
Menezes Leitão defende a aplicação do regime da mora porque efectivamente o devedor ao se obrigar a prestar não assume o risco de a sua prestação não se realizar por ausência de colaboração do credor, mesmo que não derivada de culpa deste.
 

 


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publicado por Margarida Balseiro Lopes às 02:53
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Sexta-feira, 13 de Fevereiro de 2009
Regiões Administrativas

 A divisão tradicional do País é muito antiga. Aparece pela primeira vez no testamento de D. Dinis, datado de 1299. Às unidades desta divisão se dará, um século depois, o nome de comarcas; no decurso do século XVI surgem também as províncias, que acabam por prevalecer. No século XVII, a província era uma circunscrição militar, sem que qualquer interferência nas Câmaras Municipais: os generais que comandavam cada uma das províncias tinham atribuições civis – como a polícia e ordem pública. A Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 consagram a divisão provincial, sem as dotar de órgãos administrativos próprios. Em 1828 gera-se a polémica nas cortes reunidas após a outorga da Carta Constitucional: uns defendiam a divisão do Reino em províncias e outros que, temendo os poderes dos governadores destas, defendiam a divisão em comarcas ou distritos.

O Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832 (Mouzinho da Silveira), dividiu o país em províncias, comarcas e concelhos e colocou à frente de cada uma das 8 províncias um órgão executivo, o Prefeito. Esta foi uma reforma muito contestada pela oposição radical que era contra as províncias, dada a impopularidade da figura do Prefeito e defendia que só as comarcas deveriam ser supramunicipais. Os partidários do Governo queriam antes as províncias e pretendiam suprimir as comarcas. Ambos queriam apenas uma autarquia supramunicipal. Acabou por se chegar a um compromisso (estabelecido pela lei Rodrigo da Fonseca), em 1835, que deu lugar ao nascimento do distrito. No entanto, a lei de 1835 mantém a província, não como autarquia local ou circunscrição administrativa, mas para o efeito de enquadrar a localização dos vários 17 distritos. Já em 1867 se procurou reduzir o número de distritos para 11, era uma forma de voltar às províncias sem dizer o seu nome (Marcello Caetano). No entanto, em 1872 o Código Administrativo de Rodrigues Sampaio mantém o distrito, que se torna uma autarquia local, mantendo-se como autarquia local até 1892. De 1913 a 1917, o distrito recupera a sua condição de autarquia local. Na Constituição de 1933 surgem 2 entidades acima do município: o distrito e a província, mas só esta última era autarquia supramunicipal. Enquanto o distrito era uma mera circunscrição administrativa sem carácter de autarquia local, que funcionava como área territorial de jurisdição do Governador Civil, a província era uma associação de concelhos com afinidades económicas, geográficas e sociais, destinada a exercer atribuições de fomento, coordenação económica, de cultura e assistência. Na Revisão Constitucional de 1959, é substituída a província pelo distrito como autarquia supramunicipal. O problema das províncias, que se prendia com as suas atribuições, mantinha-se com os distritos. Em suma, a província surge, na história portuguesa, como uma emanação espontânea dos municípios, federados para efeitos do desenvolvimento económico e social; o distrito surge como prolongamento do poder central, que quer estar presente localmente para efeitos de tutela e coordenação dos municípios.
Na Constituição de 1976, não se contemplou os distritos como autarquia supramunicipal devido à má experiência recente, nem as províncias porque era um regresso ao passado. Criou-se assim a região administrativa. Já existia desde 1969 uma divisão regional, as Regiões e Planeamento, mas que não passavam de circunscrições de administração local do Estado. Actualmente, já não incluem os Açores e a Madeira, estão na dependência do Ministério do Ambiente, são as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDRS’s – DL 194/2003 de 23 de Maio) e continuam a ser um produto de desconcentração da acção do Estado. As autarquias locais são hoje as freguesias, os municípios e as regiões administrativas (236º CRP). As regiões administrativas são autarquias locais supramunicipais, que visam a prossecução daqueles interesses próprios das respectivas populações que a lei considere serem mais bem geridos em áreas intermédias entre o escalão nacional e o escalão municipal.
Mas, importa traçar as diferenças que existem entre as regiões administrativas continentais e as regiões autónomas insulares: as regiões continentais são autarquias locais, enquanto as regiões insulares são verdadeiras regiões político-administrativas; as regiões continentais regulam-se pelo Direito Administrativo estadual e têm apenas poderes administrativos, as insulares por estatutos político-administrativos elaborados por elas próprias, aprovados na AR, tendo para além de poderes administrativos, poderes legislativos e participam (parcialmente) no exercício da função política do Estado. Os órgãos das regiões continentais têm órgãos administrativos e o seu executivo é uma junta, as regiões autónomas insulares têm órgãos de governo próprio e o seu executivo é um governo – o Governo Regional. A dissolução dos órgãos regionais no Continente compete aos tribunais, diferentemente, nas regiões insulares compete ao Presidente da República. Em síntese, as regiões administrativas continentais são entidades administrativas, que exercem funções de auto-administração, enquanto as regiões autónomas insulares são entidades políticas, que exercem funções de auto-governo.
E, é fundamental começar por traçar os limites e contornos entre poder político e administrativo, sendo as regiões enumeradas no artigo 255º da CRP apenas administrativas. Como propõe Sérvulo Correia, na função administrativa deve incluir-se "não só a actividade de execução das leis mas também a actividade "cujo objecto directo e imediato consiste na produção de bens ou na prestação de serviços destinados à satisfação das necessidades colectivas". A função política traduz-se numa actividade de ordem superior que tem por conteúdo a direcção suprema e geral do Estado, tendo por objectivos a definição dos fins últimos da comunidade e a coordenação das outras funções à luz deste fim". Por seu turno, Marcelo Rebelo de Sousa considera como funções primárias do Estado a função política e a legislativa e em contraposição a estas, encontram-se as funções secundárias entre as quais a função administrativa que "compreende o conjunto dos actos de execução de actos legislativos traduzidos na produção de bens e na prestação de serviços destinados a satisfazer necessidades colectivas que, por virtude de prévia opção legislativa, se tenha entendido que incumbem ao poder político do Estado-colectividade".
Deve assim pôr-se em evidência que as pessoas colectivas descentralizadas não dispõem do poder de decidir livremente acerca da sua competência; esta é-lhes outorgada pelo poder político através de actos legislativos e sempre dentro das balizas que a Constituição traça. O poder administrativo mais não pode fazer que executar as decisões do poder político e que este verteu em lei. É através das competências que são dadas aos órgãos das pessoas colectivas com funções administrativas que aqueles exercem e prosseguem as atribuições que a lei lhes confere.
No que respeita às atribuições das regiões, o legislador ordinário há-de confiar às regiões aqueles interesses públicos cujo nível óptimo de decisão não seja nem o municipal nem o nacional, mas o escalão intermédio entre ambos – o escalão regional. Os artigos 257º e 258º da Constituição elencam as atribuições (mínimas) das regiões: dirigir serviços públicos, isto é, dirigir os serviços que a lei criar como serviços regionais, ou por transferência do Estado para a região (transferência para baixo), ou por transferência dos municípios e suas associações para as regiões (transferência para cima), ou ainda por transferência da administração periférica do Estado para a região (transferência horizontal); coordenar e apoiar a acção dos municípios da respectiva área, no respeito da autonomia destes e sem limitação dos respectivos poderes; elaborar os planos regionais de desenvolvimento económico e social; participar na elaboração dos planos de desenvolvimento económico e social de âmbito nacional previstos nos artigos 90º e seguintes da Constituição. A Lei-Quadro das Regiões Administrativas concretiza um pouco mais estas directrizes constitucionais, no artigo 17º, atendendo ao princípio da subsidiariedade, referido também no n.º 4º deste diploma. No entanto, este artigo 4º estipula que a definição das atribuições, competências e recursos da região não pode retirar nem ao Estado nem ao município. Há uma subversão do princípio da subsidiariedade.
A ideia que subjaz à regionalização é: a descentralização do Estado, através das transferências para baixo, isto é do Estado para a região. E, grandes parte das tarefas é já desempenhada pelo Estado ou pelos municípios. O próprio planeamento regional é já feito pelas CCDR’s, que são órgãos do Estado. O princípio da subsidiariedade deve levar a cabo uma repartição de atribuições entre a comunidade maior (Estado) e a comunidade menor (município) para que a comunidade maior só as tenha de realizar, quando a comunidade menor não for capaz disso. Desta forma, a administração central do Estado não deve ocupar-se das funções que possam ser bem desempenhadas pelas regiões, nem estas se devem intrometer no que for melhor resolvido pelo município, nem estes hão-de chamar a si o que puder ser mais bem feito pelas freguesias. Na opinião do Prof. Freitas do Amaral, este artigo 4.º é ilegal e inconstitucional. Ilegal porque contraria frontalmente a Carta Europeia da Autonomia Local, aprovada pela resolução n.º 28/90 da AR. É inconstitucional porque contraria os princípios da subsidiariedade e da descentralização democrática da Administração pública (art. 6/1 CRP), bem como o princípio da aproximação dos serviços às populações (267/1 CRP) e porque entre os art. 235º a 265º não se vislumbra a secundarização da região em relação ao Estado. Trata-se de fazer uma delimitação entre os interesses públicos de carácter regional que devam continuar a cargo do Estado e os que devam passar para a esfera própria das regiões.
A Constituição no artigo 259º enumera dos dois órgãos da região: a assembleia regional e a junta regional. A Assembleia Regional compreende, além dos representantes eleitos pelos cidadãos, membros eleitos pelas Assembleias Municipais, em número inferior ao daqueles (260º CRP). A Junta Regional é o órgão colegial executivo da região, eleita por escrutínio secreto, pela Assembleia Regional de entre os seus membros. Haverá junto da região, um representante do Governo, nomeado em Conselho de Ministros: o governador civil regional, que será um magistrado administrativo e autoridade policial.
As regiões administrativas, apesar de previstas na Constituição desde 1976, nunca foram criadas, tratando-se para o Prof. Fausto de Quadros de uma inconstitucionalidade por omissão. Há já uma lei quadro das regiões administrativas (lei 56/91) e uma lei de criação das regiões administrativas (lei 19/98 de 28 de Abril). Para além destes dois diplomas, é necessário o voto favorável da maioria dos cidadãos eleitores em referendo e depois a aprovação da lei de instituição em concreto de cada região. Em 1998, houve um referendo sobre a regionalização em que venceu o Não. O Prof. Fausto de Quadros sustenta que o projecto de 1998 visava constituir regiões mais do que administrativas, políticas.
No entanto, o processo de regionalização não está encerrado, tendo há poucos dias reacendido o debate. Importa antes de mais clarificar o conceito de regionalização: é a criação de entidades públicas novas, autónomas, chamadas regiões, com órgãos próprios de decisão, eleitos em sufrágio directo e universal pela população residente em cada região e dotados de competências próprias para resolverem os seus próprios assuntos, através dos seus próprios recursos humanos, materiais e financeiros. Em primeiro lugar, cabe definir que funções poderão ser entregues às regiões: poderão desempenhar funções no âmbito dos seus próprios bens e serviços, património, finanças e funcionários; ou funções transferidas pelo Estado para a região, através de um processo de descentralização; ou ainda funções transferidas pelos municípios para a região, por se chegar à conclusão de que serão mais bem desempenhadas ao nível da região do que ao nível do município. A segunda questão que se coloca é o critério da divisão do país, ou seja, o modelo, com que fronteiras, com que características económicas, sociais, administrativas. Por fim, e não menos importante é definir o sistema de afectação de recursos financeiros às regiões, tem de haver descentralização e autonomia financeira.
Quanto à divisão do território, há dois grandes modelos em alternativa: o modelo da grande região (que daria cinco ou seis regiões administrativas no Continente português, lembrando as Comarcas da Monarquia Tradicional) ou pelo modelo da média região (dez ou onze regiões, à semelhança das províncias dos séculos XIX e XX). A região-comarca é mais favorável ao planeamento económico; como é uma grande unidade heterogénea, é possível ao nível das potencialidades e deficiências haver uma compensação; confere maior peso às decisões e declarações dos órgãos regionais; envolve menor dispêndio na instalação das regiões. As vantagens da região-província: a tradição histórica é-lhe mais favorável; consegue-se uma maior polarização dos entusiasmos regionais; constituem menor perigo para a unidade nacional; maior facilidade na resolução do problema político da divisão regional do Alentejo; melhor articulação com as áreas metropolitanas Lisboa e Porto.
A existência de números preceitos constitucionais sobre a regionalização torna mais complexa a sua execução (Prof. António Cândido de Oliveira). Em França, por exemplo, puseram-se em funcionamento as regiões (1986) e só quando se tornaram consensuais é que foram introduzidas na Constituição (2003). A Constituição impede a criação de uma região piloto, uma vez que exige que sejam criadas em simultâneo. Antes da Revisão Constitucional de 1997, bastava que a lei criasse as regiões administrativas do continente e depois exigia-se o voto favorável da maioria das assembleias municipais nela inscritas, devendo essa maioria corresponder à maioria dos eleitores dessa região. Mas na realidade o que trouxe de novo a Revisão Constitucional de 1997? Passou-se da consulta às assembleias municipais para uma obrigatória consulta directa dos eleitores, através do instrumento do referendo. O referendo deverá ter duas questões: uma de alcance nacional e outra de alcance regional. O resultado do referendo só é vinculativo caso o número total de votantes seja superior ao número e eleitores. É também necessário que haja 50% de votantes em relação aos recenseados naquela região. Exige-se ainda que se publiquem as leis que instituem cada região administrativa, isto é, cada região teria a sua lei, sendo esta uma matéria de reserva absoluta da AR (164º alínea n).
Importa clarificar todo este processo: ou se avança realmente para a regionalização ou estabelece definitivamente que as únicas autarquias locais em Portugal são a freguesia e o município.

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publicado por Margarida Balseiro Lopes às 01:27
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